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Da ficção ao punk-rock britânico

A primeira ideia que deu base para o surgimento dos fanzines apareceu antes mesmo da criação do termo. Foi nos Estados Unidos, mais precisamente em Chicago no ano de 1930, que a Science Correspondence Club produziu o que anos mais tarde viria a ser conhecido como o primeiro fanzine da história. Entitulado The Comet, a publicação produzida por Raymond Palmer e Walter Dennis era inteiramente amadora e apresentava conteúdo de ficção científica. A partir daí, cada vez mais espaço foi aberto para a criação de materiais semelhantes, sendo que ao final da década de 1930, as histórias em quadrinhos já passaram a integrar os fanzines de ficção científica que eram distribuídos aos fãs através dos correios. A evolução e aceitabilidade dos fanzines rompeu as barreiras geográficas e chegou a Europa no final da década de 60, tornando-se um gênero literário marcante durante os movimentos de contracultura.


O desvio das produções pessoais para objeto de mediação entre artistas e a contracultura tornou os fanzines (a partir de então, abreviados como ‘zines’) mais acessíveis e representantes de causas específicas, incluindo-os em vertentes como a música e o cinema, onde as ideologias se dissolvem na subjetividade para alcançar mentes abertas. Nos traços e rabiscos, as histórias assumiram posições dos gritos de protestos, carregando a partir daí um valor politizado. Viés, aliás, de que a arte dificilmente consegue escapar.


Exemplar do zine Sniffin' Glue, uma das primeiras produções com viés relacionado ao punk rock.

Créditos: Girls With Style



Para a professora da UFPB, Andréa Karinne Albuquerque, mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas, a rápida ascensão dos fanzines está relacionada ao fato da arte “lidar com determinadas tribos urbanas que compartilham o mesmo gosto, e que se tornam aficionados por certos temas, buscando ter com quem discutir sobre os mesmos interesses, possibilitando novas amizades, conhecimento especializado e sobretudo, o sentido de pertencimento”. Ela também cita que outro aspecto atraente, não somente em relação aos fanzines, mas quando falamos de qualquer manifestação cultural independente, “diz respeito ao caráter marginal, de romper com a estrutura social vigente, de possibilitar o exercício da liberdade de expressão, de fazer a sua própria mídia, divulgar suas ideias, principalmente quando elas são contrárias as propagadas pela sociedade de uma forma geral”.


É exatamente essa particularidade que cada autor pode impor a seu zine que o torna tão atraente e diverso. Não há como traçar um perfil exato de quem lê e publica zines no Brasil porque com o seu crescimento, eles passaram a atrair cada vez mais novos tipos de “tribos” urbanas.


“Até o final dos anos 90 e início dos anos 2000, fanzine era uma coisa que estava muito ligada às subculturas, à cultura jovem. Na época muita gente chamava de tribo, então a galera do metal, os punks, a galera do hip-hop, todas essas subculturas usavam o fanzine para se comunicar. Primeiro porque era o meio mais barato que tinha para fazer isso; Era também o meio mais confiável porque se fosse depender da grande imprensa para entender o que estava acontecendo nesses meios, a informação sempre chegava de uma forma distorcida, pois é uma visão de fora”, comenta Douglas Utescher, co-proprietário da loja de quadrinhos undergrounds, a Ugra Press.


O mundo retratado pelos zines vai muito além dos estilos musicais. A moda, estilo de vida, política, padrões sociais, tudo está presente nessa linguagem que se adapta a vários formatos e histórias. Como artistas, cada criador de zines busca inspirações em diferentes coisas. “No geral a gente gosta muito de observar comportamentos. Isso é, o que influencia a música, a moda e a arte. Cada grupo ou "tribo" tem suas particularidades e isso é muito inspirador para nós”, conta Marie Victorino, criadora do site Girls With Style (GWS) junto com Nuta Vasconcellos. A dupla produz zines que discutem sobre o feminismo e o papel das mulheres na sociedade brasileira, além de conteúdo musical, sobre moda e comportamento.


Quem também retrata o comportamento humano em seus quadrinhos independentes é quadrinista Francisco Marcatti Jr, que procura enxergar o cotidiano com um olhar inusitado. “Geralmente [eu retrato] comportamento humano, a sociedade não resolvida, que não se resolveu no mundo enquanto grupo social. Para mim é sempre aquela coisa das distorções da sociedade humana”.


Um dos personagens de maior sucesso de Marcatti foi Frauzio, que chegou a virar uma revista em quadrinhos mensal, em 2001, e a ser distribuída pela Editora Escala. Com o fechamento da revista pela editora, Marcatti passou a produzi-la por conta própria, em 2003, com o título de Desventuras de Frauzio, chegando a ganhar o prêmio de melhor revista independente, em 2004, no 16º Troféu HQ Mix. Ao falar sobre o estilo de humor escatológico que ele emprega em seus quadrinhos, Marcatti brinca: “Meu trabalho é nojento. Eu acho que nasci torto, deve ser meu intestino que está ligado ao cérebro, então deve ser assim que vêm as ideias”.


Já quadrinista Henrique Magalhães, dono da editora Marca de Fantasia, revela que o produtor de zines deve ter um olhar observador e atento ao mundo a que o cerca. “O que me inspira é o mundo a minha volta, que é a fonte para a elaboração de minhas tiras. A vida cotidiana é repleta de histórias incríveis sobre as quais podemos refletir e sacar tiradas de humor”.


Essa visão próxima da realidade é um elemento chave que atrai um público sempre disposto a conversar com o autor e ajudar na produção de suas obras com suas opiniões e experiências de vida. “O barato do fanzine é que é um negócio em primeira pessoa. Se você vai ler um fanzine punk, é o punk falando aquilo, o cara é aquilo 24 horas por dia então ele tem uma visão que é muito mais confiável e que dialoga muito mais com os outros punks, com as pessoas que se identificam com aquilo”, comenta Douglas sobre a relação autor-leitor que está implícita no universo dos zines. Ele mesmo complementa dizendo que “por trás de tudo tem esse ‘lance’ de você tomar as rédeas no controle do seu interesse, pelas coisas que te motivam e tal, seja isso ficção científica, veganismo, anarquismo, quadrinhos, etc”.


LINHA DO TEMPO COM A EVOLUÇÃO DOS ZINES

Arte: Barbara Godoy


Uma forma despretensiosa de praticar o Jornalismo Cultural


A total liberdade de criação também é um dos atrativos para a produção de um zine, como destaca Magalhães. “Ao fazer sua própria publicação o autor tem total domínio sobre sua obra, não sofre os condicionamentos do mercado, que sempre visa o lucro e o público amplo. Como independente é possível experimentar, criar sem restrições e falar diretamente com seu público, que vai ser o leitor interessado em seu trabalho, com quem é possível dialogar”.


Apesar da possibilidade infinita para criação, Marie comenta sobre uma das maiores dificuldades para quem opta trabalhar com quadrinhos por conta própria. “Não sei se chega a ser melhor [trabalhar de maneira independente], já que financeiramente falando é bem mais complicado! Tem uma liberdade incrível, podemos falar sobre qualquer assunto, com nosso posicionamento e pontos de vista, além de fazer as coisas no nosso próprio tempo”.


A dinâmica com que os fanzines tratam os assuntos de cotidiano desses públicos específicos chamaram atenção para uma nova manifestação que se apresentava como meio alternativo de comunicação e propagação de notícias sobre temas marginalizados pela grande mídia. Os zines foram ocupando cada vez mais espaço no cenário do jornalismo cultural e apoiaram diversos profissionais da área que não encontraram lugar na imprensa tradicional.


Zine Facts about menstruation | Créditos: Sarah



“Os fanzines são publicações criadas inicialmente, por fãs para fãs, para discutir questões relacionadas à música, cinema, HQs e às artes em geral. Apesar desses produtores não serem necessariamente jornalistas culturais, eles possuem um conhecimento especializado sobre as áreas temáticas que escrevem, o que pode proporcionar a divulgação dessas manifestações artísticas, bem como, provocar a reflexão sobre as questões técnicas e estéticas que permeiam esse produto cultural”, ressalta a professora Andrea Karinne, que ainda cita a importância dos zines como um meio que preencha a lacuna deixada pelo jornalismo cultural, pautando, muitas vezes, as artes que não encontram espaço nas mídias tradicionais, fortalecendo a cena independente.


Os produtores de fanzines também são unânimes quanto a essa relação do gênero com o jornalismo cultural. “Os fanzines são a semente do jornalismo cultural. Ainda não se entende dessa forma, poucas pessoas entendem isso, mas, ele é totalmente livre de qualquer intervenção editorial ou de um grande grupo. Normalmente, a manifestação, principalmente dos zines de notícias, de matérias, ele é a essência porque é a comunicação de quem vê e quem vive escrevendo para quem também vive aquilo de que se fala. É o mais despojado e o mais sincero meio de comunicação, nem sempre com a qualidade jornalística que deveria ter, mas com uma qualidade de conteúdo imbatível”, comenta Marcatti.


A intimidade e a proximidade com seus fãs é uma particularidade dos fanzines. Algumas publicações ganham em sofisticação ao proporem uma carga editorial diversa sem, no entanto, desgrudar da essência pessoal de seus autores e de seu público. “Produzimos jornalismo e cultura ao editar um fanzine ou uma revista independente. Mostramos nossa arte e a de outros autores, fazemos uma cultura de resistência, mesmo uma contracultura, contra a massificação, a mediocridade, o consumismo e a falta de criatividade nas produções da indústria cultural. O fanzine é uma publicação opinativa, que traz artigos, reportagens, cartas e outras matérias reflexivas, como as próprias HQ, os cartuns, caricaturas e charges”, ressalta Magalhães ao afirmar a ligação do fanzine com o jornalismo cultural.


Ainda dentro desse cenário do jornalismo, os fanzines podem funcionar como um “laboratório” para quem está ingressando nessa carreira. “Você ter um lugar onde você seja o chefe e as pautas, decidir o que você vai colocar e o tom que vai dar aos textos é uma baita experiência. O zine impresso ainda traz outras questões que podem ser bacanas para o jornalista, que é dele ter que pensar na página, numa sequência para como que ele vai dispor as informações e todas essas coisas que, inevitavelmente, depois é uma bagagem que ele vai levar para a vida profissional”, ressalta Douglas.


Por fim, dentro desse cenário globalizado em que vivemos, os fanzines, assim como qualquer outro tipo de mídia precisaram se adequar a esses novos tempos. E nada melhor do que um “upgrade” tecnológico e uma grande ajuda dos novos fãs do gênero, cada vez mais antenados e dispostos a utilizar as infinitas ferramentas da Internet para fazer ouvir suas opiniões. Assuntos como política, feminismo e empoderamento das mulheres, apoio à diversidade sexual, reavivamento da cultura negra, asiática e de outras minorias, ativismo e questões ligadas ao meio ambiente, tão presentes no nosso noticiário diário, também estão ganhando cada vez mais as páginas dos zines, que voltam contudo com essa temática mais questionadora dos anos 1970 e 1980.


Outra grande propulsão que a Internet tem causado é o surgimento dos “e-zines”, fanzines no formato digital já está ganhando espaço nas redes sociais e nas telas dos computadores dessa galera mais alternativa. Se usado da forma correta, a plataforma online pode, não só baratear os custos de produção de um zine, como também ampliar a rede de alcance dessa manifestação e criar uma nova febre da chamada “contracultura”.



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Entrevista - Douglas Utescher -
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